Artigo - Open Access.

Idioma principal

A vítima do inenarrável como objeto de captura das subjetividades

Queiroz, Silvia Maria Brandão ;

Artigo:

Pensamos a experiência da recente ditadura brasileira no diálogo com a filosofia política e em intersecção com os modos de agir do contemporâneo. Argumentamos que a compreensão do que essa experiência tem de comum e atual, seu testemunho, está bloqueado. A incomunicabilidade do horror dos rastros que restam indeléveis da memória das vítimas faz com que elas, e ainda que de outro modo, as parcelas da coletividade não diretamente atingidas, continuem paralisadas nos efeitos perversos do trauma: a dor das vítimas segue não elaborada e as subjetividades capturadas pelas manipulações de sentidos, que reverberam nos modos como os homens exercem sua autonomia e liberdade no agora. A paralisia se configura, em parte, por meio do cálculo governamental que reconhece as vítimas mais como objetos do que como sujeitos: de um lado, os vitimados merecedores de cuidados, mas incapazes do discurso e da ação, do outro, o Estado e seus especialistas, que cuidam dos sofredores e delimitam suas capacidades políticas. Ao mesmo tempo em que as ações oficiais buscam atender as necessidades de reparação pecuniária e simbólica, de verdade histórica, de apoio psicológico, colocam as vítimas no fora de lugar dos testemunhos públicos do litígio e das trocas de argumentos dos contáveis da justiça. O reconhecimento se dá então pela individualização das vítimas como exterioridade com relação ao restante da sociedade. E as vítimas reconhecidas por sua condição biológica [o corpo que sofre] e psíquica [o trauma que não se esquece]. Reconhecidas como resultado da pura animalidade da tortura. Esse modo de agir governamental evidencia o paradoxo dos direitos humanos, quando faz aparecer o sujeito de direitos como uma vítima receptora das políticas de Estado, mais do que como um sujeito capaz de agir e transcender o lugar previamente outorgado pelo direito legitimador da democracia. Isso não significa dizer que as ofensas são imaginárias, as vítimas merecem reparação. Todavia, refletimos em que medida o status de vítima como sofrimento e falta é utilizado para capturar subjetividades. E em que medida a vítima é o que não se captura e nos põe sob os olhos os limites da universalidade abstrata do sujeito de direito, que muitas vezes se torna invisível no jogo do reconhecido - jogado fora. Algo sempre resta. A vítima é o resto, mas um resto que se faz presente de múltiplas formas.

Artigo:

Palavras-chave: ditadura, democracia, reconhecimento, vitimização, ação política,

Palavras-chave:

DOI: 10.5151/phipro-sofia-038

Referências bibliográficas
  • [1] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
  • [2] __________________. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
  • [3] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
  • [4] _______________.Responsabilidade e julgamento. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 200
  • [5] BADIOU, Alain. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Trad. Antônio Transito; Ari Roitman. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 199
  • [6] DOSSIÊ Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto de Estudos sobre a Violência do Estado, 2009.
  • [7] FOUCAULT, Michel, O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.;RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Portocarrero; Gilda Gomes Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 273-295.
  • [8] FREUD, Sigmund. Recordar, repetir, elaborar. In: Sigmund Freud: edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, vol. 12, 1996.
  • [9] MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro, anistia e suas conseqüências: um estudo do caso brasileiro. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
  • [10] O’DONNELL, Guilhermo. Contrapontos: Autoritarismo e democratização. Trad. EdelynKay Massaro; Nathan Giraldi. São Paulo: Vértice, 1986.
  • [11] RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1996.
  • [12] RICOEUR, Paul. O percurso do reconhecimento. Trad. Nicolas Nyimi Campanário, São Paulo: Edições Loyola, 2006.
  • [13] _____________. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François (et. al.) Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2007.
  • [14] SELIGMANN, Márcio. O local do testemunho. In: RUIZ, Castor M. M. Bartolomé (org.). Justiça e memória: Direito à justiça, memória e reparação: a condição humana nos estados de exceção. São Leopoldo: Casa Leiria: Passo Fundo: IFIBE, 2012, p. 55-80.
  • [15] TELES, Edson. Brasil e África do Sul: memória política em democracias com herança autoritária. 2007. 153 f. (Doutorado em filosofia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
  • [16] TODOROV, Tezvtan. Los abusos de la memoire. Trad. Miguel Salazar. Barcelona: Paídos, 2000.
Como citar:

Queiroz, Silvia Maria Brandão; "A vítima do inenarrável como objeto de captura das subjetividades", p. 301-308 . In: Anais da VIII Semana de Orientação Filosófica e Acadêmica [= Blucher Philosophy Proceedings, n.1, v.1]. São Paulo: Blucher, 2014.
ISSN 2358-6567, DOI 10.5151/phipro-sofia-038

últimos 30 dias | último ano | desde a publicação


downloads


visualizações


indexações